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sexta-feira, 13 de maio de 2011

A Princesa de Bizâncio e o escândalo do Garfo

Antiga Bizancio
                               Pergunta risível. Mão por baixo, mão por cima, cautelosamente, pergunto: o uso de um simples garfo pode provocar um grande escândalo na sociedade com a posterior morte da vítima? Deverasmente, se o caríssimo leitor pensoso estivesse em Gênova, no século XI e usasse este banal e comezinho utensílio. Nesta época o costume era comer com as mãos ou com uma faca. O garfo era desconhecido.  Se você usasse um garfo, o escândalo seria favas contadas, como dizia Machado de Assis, 1839-1908 d.C., com riscos palpáveis de perder a sua vida. Narrarei a história da princesa de Bizâncio depois de antelóquio ou reflexão e refletir é pensar com humildade. O garfo é filho do espeto, inicialmente com dois dentes, depois três e finalmente quatro. Os napolitanos comeram espaguete com as mãos por muito tempo, o garfo só tinha três dentes o que dificultava enrolá-lo. Fernando II de Bourbon, rei de Nápoles, adorava um espaguete e comia escondido, não queria ser visto comendo com as mãos. O seu despenseiro real, Gennaro Spadacini, refletiu e colocou o quarto dente, resolvendo o problema.
São Boaventura
 

                               Antelóquio ou reflexão. A história do garfo é um campo fértil para a reflexão. Hoje estamos no século XXI, dez séculos depois, ou seja, 1.000 anos depois do caso da Princesinha de Bizâncio e ninguém mais neste mundo sem fundo se importa mais com os garfos que estão sempre à mão e eles já se "desenvolveram" tanto que são até descartáveis. O que nos provoca escândalos hoje! Quais são as nossas verdades fossilizadas? Daqui a 1.000 anos os nossos descendentes vão rir de quais loucuras, com ares de verdade, que cometemos todo santo dia? Destarte, este texto é um convite à reflexão, a pensarmos diferente e porque não tentarmos estar à frente 1.000 anos. É difícil, refletir demanda muita energia cerebral, contudo, no mínimo devemos estar atentos, uma boa idéia, produto da reflexão, pode vir de mão beijada. Não podemos esquecer que tudo é movimento e mudança. Reflexão é movimento com possibilidade de mudança. Somos filhos da reflexão, devemos refletir com mão diurna e noturna. Muitos ficam fora de mão, na contramão, sem perceberem que isto é cavar a própria perdição, ficar com uma mão atrás e outra na frente. Alguns dizem: as coisas sempre foram assim! Não tem jeito! Esses, com certeza, irão perder o bonde da história, é questão de tempo. O poder da reflexão é sesquipedal, o método caminhar e refletir é uma dádiva dos gregos. Aristóteles, 384-322, a.C. já adotava na Grécia o método de caminhar e lecionar. Este método aristotélico tem uma palavra que estimo muito: peripatetismo. Não é à toa que muitos, sabiamente, caminham para cismar melhor, pode ser feito até com as mãos na algibeira, descontraidamente.                                                              

Aristóteles, caminhar e ensinar,
peripatetismo

                              Refletir é pensar com humildade, sem escândalos, desconfiar da própria roupa que usamos. É acender o farol da razão. É triste contemplarmos pessoas jovens que são verdadeiros adoradores do passado e de verdades fossilizadas, quando o mistério do passado, a história, demanda darmos mão forte à reflexão. O filósofo David Hume, 1711-1776, observou que o que nos guia quase todo o tempo são os hábitos, o costume de fazer sempre as mesmas coisas, inclusive aceitas por todos, assim, diante deste contexto imaginamos que estamos repletos de verdades, que somos donos da verdade. A força do hábito é avassaladora, o nosso guia, nos ajuda, gastamos menos energia cerebral para fazermos as mesmas coisas, basta repetir, contudo, é aí que mora o perigo, o hábito é uma mão dupla, ajuda e atrapalha. Odiamos refletir, por a mão na massa cefálica, isto demanda energia que não queremos pagar. Refletir tem um preço: a sociedade não  gosta muito de quem pensa, principalmente os velhacos. 
   
David Hume e o hábito como verdade
                 A Princesinha de Bizâncio. Pacientíssimo leitor meditabundo, vamos refletir, só para nos situarmos, Gênova fica na Itália e é o principal porto marítimo e centro industrial do norte da Itália, ganhou importância histórica como núcleo da atividade econômica européia entre os séculos XII e XIV. É a capital da província do mesmo nome e da região da Ligúria e situa-se no noroeste da Itália, no golfo de Gênova. No século XI, Teodora Ducas, uma princesinha de Bizâncio ou Império Romano do Oriente casa-se com Domenico Silvio, um Doge de Gênova, ou seja, um magistrado supremo das antigas Repúblicas de Veneza e Gênova. Neste ponto é de bom alvitre uma pincelada de história, no ano de 395, Teodósio dividiu o império romano em duas partes: Império Romano do Ocidente, com capital em Milão e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla. O Império Romano do Oriente no século XI era mais refinado que o do Império Romano do Ocidente. Os casamentos arranjados entre os impérios era costumeiro. A nossa princesa civilizada deita mão em um garfo e o traz na sua bagagem para Gênova. A verdade, a regra na época ali era comer o sagrado alimento com as mãos, nada de usar garfo. Podia-se usar no máximo uma faca. O escândalo foi geral em Gênova pelo uso do garfo. Uma faca era tudo na época, arma e ferramenta. A faca era usada para matar um animal, palitar os dentes e o melhor, um bom instrumento de defesa. A faca fazia parte da indumentária varonil ou de um nobre, se eles iam a uma festa cada um levava a sua faca, os convivas ainda não tinham perdido em favor do anfitrião o direito de usar os seus próprios meios de cortar os alimentos. Ninguém botou a mão na consciência, a princesa é insultada. Hoje os homens veêm discos voadores aqui e acolá, naquela época medieval os homens viam demônios em todos os cantos e em todas as coisas. Como não poderia deixar de ser a Igreja Católica meteu a mão na cumbuca e viu demônios dançando e perambulando no garfo e se posicionou contra o inofensivo utensílio. São Boaventura, 1240-1284, famoso teólogo da igreja, à mão-tenente, num sermão acusa a princesa de ímpia. É necessário trazermos à baila uma circunstância atenuante em favor de São Boaventura, a antipatia pelo garfo era em razão dele ter o formato de um tridente ou forcado, instrumento que o diabo estava sempre carregando nas iconografias clássicas. Outra tese da igreja era que o alimento, dádiva de Deus, devia ser levado à boca diretamente pelas mãos sagradas dos homens. A princesa não aguentou a mão, não teve mão de si, logo vem a morrer, os donos da verdade acreditam, piamente, que Deus a castigou por sua soberba em usar um garfo, ferramenta do diabo, nas refeições. Alguns séculos se passam, estamos na Renascença, movimento cultural iniciado na península itálica entre os séculos XIV e XVII, o garfo, finalmente, foi aceito como utensílio de pessoas civilizadas e comer com as mãos ou usando só a ponta de uma faca, se tornou apenas hábitos de pessoas toscas. Em Paris, o garfo chegou com o enxoval de uma mulher, Catarina de Médici, da célebre família que dominou Florença neste período, que ao casar com o futuro rei da França Henrique II, levou os seus talheres.  

...o certo e o errado como hábito...
                               Epilogando. Pondo a mão no fogo, afirmamos que a reflexão é o fermento da razão, uma mão na roda. As nossas idéias, as nossas verdades, são efêmeras e periculosas, podem matar as princesinhas de Bizâncio. O certo e o errado, na maioria das vezes, não passam de hábitos, costume que nos aferramos, David Hume é sempre lembrado por este alerta. Pacientíssimo leitor pensabundo, dando mãos à palmatória, o que me deixa intrincado, isso mesmo, mordido da cachorra da molesta, é que se eu fosse um Genovês do século XI, por deveras, teria condenado a princesa Teodora Lucas e o pior é que, talvez, até tu, caríssimo leitor se estivesse no século XI a condenaria. Quando refletimos estamos em boas mãos, contudo, cuidado, muito cuidado, para não colocar a mão na cumbuca com as suas meditações. Reflita com moderação!     

...refletir é pensar com humildade...
Contantinopla, hoje Istambul, Capital da
Turquia, visão da ponte que liga o continente
europeu ao asiático. Foi fundada em
667 a.C. pelos gregos

                                     Zé Perrengue. Muita saúde a todos!

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Um comentário:

  1. Texto interessante e divertido.Quantas coisas ainda por descobrir que estão abaixo do nariz!

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